A Partida
Olívia Dríniel estava atrasada para a reunião, porque acabou cochilando, despertou sonhando com o compromisso. Saiu às pressas, com cautela para que não fizesse barulho nas ruas escuras, não poderia chamar a atenção dos guardiões. Chegou à casa de Calisto, todos estavam em silêncio.
A resposta à pergunta de Liriar havia chegado. Calisto chamou Olívia ao seu lado e a explicou o que haviam conversado até então, com algumas interrupções de quem não havia falado ainda.
- Ninguém, nem mesmo a família Dríniel, percebeu que faltava você aqui. Pedimos desculpas por isso. Mas pode ser que o rei também não perceba sua ausência. E isso é ótimo. Disse Calisto, com o apoio de praticamente todos.
Olívia não ficou feliz com o que ouviu daquelas pessoas. Seus irmãos eram homens, e filhos homens eram preferidos em sua família, ela era uma pessoa solitária. Ela ajudava a cuidar dos cavalos da vila, e seus irmãos cuidavam dos belos cavalos do Palácio. Gostava de ficar no celeiro com os animais e era a única que nunca ia ao Palácio, nem era vigiada pelos guardiões, porque sua rotina e suas tarefas não necessitavam de fiscalização. Era invisível, como mais ninguém da vila poderia ser.
- Como eu chegaria a Tílitris sozinha? Não sei o caminho, nunca viajei... E, querem que eu convença Feltris a nos ajudar só agora... não acham que se eles quisessem, já teriam tentado antes?, perguntou Olívia, não acreditando na eficácia do plano.
Os que mais sabiam sobre Tílitris, explicaram a situação. Em Outrora, Délane era a soberana de Árane, e amiga de Feltris, soberano de Tílitris. Os países eram muito parecidos, e um complementava o outro. Os áranes entendiam dos problemas da terra e da natureza, e os tílitris sabiam sobre os pensamentos e sentimentos das pessoas e animais.
Evonuque, o grande Mandingueiro Búfalo, construiu um portão que ficava entre Árane e Tílitris, antes de qualquer país existir naquela região, para controlar a passagem de alquimistas estrangeiros, que pudessem roubar plantas e minérios, o que atrapalharia suas mandingas. Mas as mandingas de Evonuque não eram boas nem ruins, eram indiferentes para qualquer um que não fosse um Mandingueiro Búfalo, e restavam poucos naquele tempo, porque muitos morriam envenenados por plantas desconhecidas, ou se exilavam, em busca de algum novo elixir. Eram mais poderosos que os alquimistas.
Com o passar dos anos, os tílitris foram desejando o conhecimento dos áranes, e vice-versa. Mas a aprendizagem não deu certo, porque todos só desejavam e valorizavam as coisas alheias, se esquecendo de seu verdadeiro conhecimento. E os áranes foram esquecendo suas plantações, enquanto os tílitris só falavam devaneios.
O portão de Evonuque, que ficava entre esses dois países, não permitia a passagem de sentimentos invejosos, que seria a inveja dos alquimistas por Evonuque. Os áranes e tílitris voltavam para seus países cheios de inveja e ressentimento, por não serem como o povo vizinho. Certo dia, o Portão confundiu a inveja dos áranes e tílitris com a inveja dos alquimistas, fechando-se.
Nunca mais alguém de Árane foi para Tílitris, nem alguém de Tílitris conseguiu encontrar outro caminho para Árane. Esses países perderam a comunicação. E Délane, triste com a situação, adoeceu, e escolheu um homem de bom caráter para liderar Árane. O novo soberano era Baleth. Délane logo pereceu e com ela se foi Outrora.
Um soberano fazia o que era melhor para o seu povo. No início, Baleth continuou a seguir o papel de Délane, que era ouvir as pessoas e solucionar pequenos ou grandes problemas, e garantir a segurança, e a harmonia. Mas Baleth construiu o Palácio e para lá levou sua família e aliados que se tornariam guardiões, e assim foram consumidos pela riqueza, que acumularam em segredo e com mentiras, até que um dia, confiscaram todos os aríetes, espadas e lanças da vila. Baleth anunciou ao povo que seria rei, decretando todas as normas e punições que levaram os áranes a serem escravizados.
Olívia entendeu a situação, e desejou que tudo fosse possível, e que os dias de exploração em Árane acabassem. Por um momento, imaginou como seria sua chega a Tílitris, uma cidade brilhante e colorida, cheia de pessoas alegres sorrindo para ela. Calisto e os demais deram instruções sobre o que falar a Feltris.
- As dificuldades que você vai encontrar até lá, não sabemos. Mas é a nossa última esperança, já tentamos de tudo para destruir Baleth e falhamos, você sabe disso. Leve poucas coisas, e vá agora, antes do amanhecer, é o momento ideal.
Com uma expressão de seriedade, Olívia concordou. Mas estava confusa, tudo havia sido decidido tão rapidamente, e era ela quem enfrentaria a estrada, todos ali continuariam suas rotinas, a esperar pela sua volta, com Feltris e talvez com todos os guerreiros de Tílitris. Sua família se aproximou e a abraçou, todos desejaram boa viagem, deram conselhos e a agradeceram.
A chuva começou a cair, um vento forte assoviava balançando os galhos das árvores lá fora e todos correram para suas casas. Olívia também correu, antes que sua família, e pegou um saco, em que colocou algumas frutas, pão, dois cantis com água e um pedaço de sabão. Foi até o seu quarto e pegou algumas meias e blusas compridas de um tecido marrom e rústico, e uma faca pequena, que usava para tirar a sujeira dos sapatos.
No estábulo, Olívia se despediu dos animais. Havia um cavalo que ela adotou, um animal quase cego, que havia sido judiado no Palácio, tendo suas orelhas cortadas pela filha de Baleth. O cavalo se chamava Bardax, e era solitário como Olívia. Ela o abraçou, e o levou com ela, explicando as razões pelas quais iriam viajar. Saíram naquela tempestade escura.
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Mar dos Espelhos
Os primeiros raios de sol secaram-lhe as vestes e os cabelos dos respingos salgados. Não carregava nada com si, tudo o que precisava cabia em seus diversos bolsos. Passou os dedos sobre sua bússola, e percebeu que ela havia molhado muito. Estava perdido.
Com os braços para fora do barco, tocou a água, e ouviu o belo som de cristais. Estava no Mar dos Espelhos, o mar do continente. Já passara pelo oceano sem perceber, talvez havia dormido por 3 ou 4 dias. O som de pássaros estava cada vez mais perto.
O Mar dos Espelhos tinha algo de especial. Quando os seres terrestres olhavam para a água, viam espelhos imprevisíveis, que não refletiam as imagens, mas sim as lembranças esquecidas. Muitas vezes os marinheiros sentiam tantas saudades do que não lembravam, que se atiravam ao mar, de encontro com o que viam. E o mesmo faziam, de tão alucinados, quando as lembranças eram ruins. O mar os tragava e os levava para o oceano, e aquelas pessoas viravam meras lembranças. Quando a água era tocada pelos seres terrestres, ouvia-se uma sinfonia de sinos e cristais dos espelhos.
O perigo do Mar dos Espelhos não era uma ameaça para o Menestrel, ele nascera cego. Mas outras pessoas também conseguiam passar por esse mar. Eram as pessoas que vinham de lugares distantes e mágicos, porque de alguma forma, sabiam o segredo do Mar dos Espelhos, e elas prosseguiam a viagem naturalmente, como se tudo o que vissem não as afetasse de forma alguma. As pessoas de Tílitris sabiam esse segredo, mas ele se perdeu em Outrora.
O Menestrel era alegre e determinado, mesmo estando perdido, tinha esperanças de que de alguma forma alcançaria seus objetivos. Não tinha jeito, para Tílitris não poderia mais voltar. Tirou sua gaita do bolso da blusa, e começou a inventar.
O segredo que o mar tem
Não é coisa de espantar
Não há riacho nem rio
Que nele não vá parar...
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Daniela Ortega